Ela tinha um metro e cinqüenta e seis centímetros.Chegou jovem aos seus dezesseis anos.
Tinha personalidade e era alegre. Nada a impedia de brincar as troças de carnaval que passavam na porta... E não contassem com seus serviços depois porque ela desaparecia! Estava muito ocupada!
Gostava de charque assado com farinha, fritos no fogareiro de barro comprado no mercado de Jaraguá - preto pelo uso - que mantinha com fogo acesso com os talos da madeira do quintal. Era seu costume. O melhor momento do dia antes de dormir!
Às vezes, quando faltava o fumo de corda, usava a velha palha de bananeira, dali mesmo do bananal no oitão do quintal à porta da cozinha... Fumava diariamente e nem queria opinião contra!
Miúda, já no final da vida, se apoiava na pia nova de inox para “ariar” suas panelas e detestava essas modernidades. Acocorada usando a areia do antigo braço do Riacho Salgadinho a limpeza era mais garantida. Só não viessem atrapalhar e mexer nas coisas dela, pois a cozinha era seu território e mesmo já meio senil preferia repetir a dose de sal ou de pimenta na comida que vê um prato desonerado pela interferência de quem não conhecia seu manejo!
Só usava uma grande saia rodada de chita feita pelas mãos hábeis da costureira da casa. Mas adorava receber de presente caixas de sabonetes cheirosos.
Foi quem chegou mais jovem e saiu mais tarde de todos que freqüentaram a casa da Dona Lalau. Demorou em ter sua certidão de nascimento porque não se sabia quando tinha nascido. Imaginava-se ter mais de noventa anos enquanto estava conosco. Resolveram determinar qualquer data de aniversário para tirar seus documentos. Lembrava ainda ser seu pai um escravo, mas tinha orgulho de mandar nas suas “fuiças”. Sempre foi independente.
Tinha um patuá nos peitos junto com o terço que rezava diariamente. Fazia questão de celebrar as festas da casa, que ampla e acolhedora tinha de tudo um pouco! Carnaval, Natal, Festas Juninas, Cosme e Damião, Santo Antonio, São Lunguinha, personagens de dentro, parentes, de fora, passantes e os que chegavam e iam ficando.
Assim foi com a Mariola, cozinheira – a Midiola para as crianças. Zóia costureira. Zefinha arrumadeira. Biu eletricista. Zé soldado faz tudo. Sr Rodolfo peixeiro. Todos afrodescendentes e de presença marcante. E se naquele tempo se celebrasse o Dia da Consciência Negra, Zumbi teria vindo reencarnado em Mariola guerreira, festeira.
Aliás, Maria alguma coisa porque pouco importava seu nome de batismo, era mesmo a Midiola, por causa do tamanho. Quituteira de doces e bolos inesquecíveis escondia em seu guarda roupa para fazer mimos a melhor fatia para os netinhos postiços que mais gostava!
Por um bom tempo desapareceu. Soube-se que casou, teve um filho, um neto e uma bisneta. E voltou a aparecer já idosa, dona de sua vida, pois queria morrer junto à família da velha patroa - Dona Lalau - à propósito, nossa avó. Foi recebida de braços abertos e de lá só saiu quando a patroa faleceu.
Um ano depois seu neto nos informou que Midiola tinha ido se juntar aos seus ancestrais. Porque assim é a história de quem deixa exemplo de luta pela liberdade. Inato, no caso dela – nossa ilustre serviçal e irmã de cor. Axé!
Uma homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra e contra todo preconceito!