agosto 07, 2019

Uma certa negra Mariola e sua Lalau

Dona Lalau e sua Mariola
Mariola e sua bisneta

Uma certa negra Mariola

Ela tinha um metro e cinquenta e seis centímetros. Chegou jovem aos seus dezesseis anos    no seio daquela família.

Ninguém sabia ainda mas de tão alegre era tida como trabalhadeira.

Tinha personalidade e da alegria transformava a labuta diária em satisfação.

Nada a impedia de brincar as troças de carnaval que passavam na porta... Tomava uns “goró”, levantava a saia rodada amarrada na cintura e seguia dançando. E não contassem com seus serviços depois; estava muito ocupada! Se pressionada desaparecia exausta da “rabujice” da patroa!

Gostava de toucinho e charque assado com farinha, fritos no fogareiro de barro comprado no mercado de Jaraguá - preto pelo uso - que mantinha com fogo acesso com os talos da madeira do quintal.

Mantinha "costumes".

Mantinha a Luz que jamais findava. Tanto quanto o tição. Só dormia depois desse ritual de “sustança e bençãos” da noite.

Às vezes, quando faltava o fumo de corda, usava a velha palha de bananeira, dali mesmo do bananal no oitão do quintal à porta da cozinha... Fumava diariamente e nem queria opinião contra!

Miúda, já no final da vida (sem nunca ter ido a um médico), se apoiava na pia nova de inox para “ariar” suas panelas e detestava essas modernidades.

Acocorada, usando a areia do antigo braço do Riacho Salgadinho, a limpeza era mais garantida. Só não viessem atrapalhar e mexer nas coisas dela, pois a cozinha era seu território.

E mesmo já meio senil preferia repetir a dose de sal ou de pimenta na comida que vê um prato desonerado pela interferência de quem não conhecia seu manejo! Não dava certo novos ajudantes!

Resmungava algo inaudível, exceto pela “dona Lalau...dona Lalau”... E, aos poucos, se insistissem em lhes tomar o ofício saía empurrando a criatura com aquele corpo franzino pra fora da cozinha. Sem advertências; quem estivesse ocupando o espaço e lhe “atrasando o serviço” ia pra fora! Ninguém ousava rebatê-la.

Só tinha um estilo de moda nas roupas. Usava uma grande saia florida e rodada de chita feita pelas mãos hábeis da costureira da casa e um pano na cabeça. Gostava do azul com o encarnado.

Adorava receber de presente caixas de sabonetes cheirosos. Era “limpinha” porque não tolerava “mundiça”!

E no dia que posava para fotos, caprichava no perfume de alfazema. Dizia que precisava “garantir que sua alma não fosse roubada”. Quem quiser que tentasse...

Uma vez, ganhou um robe de algodão como presente. Não serviu porque era colado no corpo e mostrava as partes. Indecente! Devolveu! Queriam lhe agradar?! Lhe trouxessem confeitos molinhos de caramelo.

Foi quem chegou mais jovem e saiu mais tarde de todos que frequentaram a casa da Dona Lalau. E dos oito filhos dos patrões, tinha o maior chamego pelo Nando, o Betinho e a Nidinha. Eles enchiam suas vistas! Os demais, o coração.

Demorou em ter sua certidão de nascimento porque não se sabia quando tinha nascido. Imaginava-se ter mais de noventa anos enquanto estava conosco.

Resolveram determinar qualquer data de aniversário para tirar seus documentos. Combinou que aniversariaria nas festas juninas. Lembrava ainda ser seu pai um escravo, mas tinha orgulho de mandar nas suas “fuiças”. Sempre foi independente.

Parecia ser sua vida plena e não esperar nada dela.

Tinha um patuá nos peitos junto com o terço que rezava diariamente. Desenhava um sinal da Cruz na testa dos bebês como a batizar. Se necessário quando doentinhos usava a arruda.

De vez em quando sentia que tinha que lavar os cômodos da morada com sal grosso e manjericão. Mas lhe faltava as forças.

Fazia questão de celebrar as festas da casa, que ampla e acolhedora tinha de tudo um pouco! Carnaval, Páscoa, Natal, Festas Juninas, e dos Santos Cosme e Damião, São Lunguinha e Sant’Antônio  (esse muito invocado – lavei-nos!), personagens de dentro, parentes, de fora, passantes e os que chegavam e iam ficando.

Ensinou as moças solteiras a colocar Sant’Antônio de cabeça pra baixo num copo d’água com muito fervor. Casariam.

Assim foi com a Mariola, cozinheira – a Midiola para as crianças.

E a Zóia  costureira. Zefinha arrumadeira. Biu eletricista. Zé soldado faz tudo. Seu Rodolfo peixeiro.

Todos afrodescendentes e de presença marcante na infância daquela família. E se naquele tempo se celebrasse o Dia da Consciência Negra, Zumbi teria vindo reencarnado em Mariola guerreira, festeira.

Aliás, Maria alguma coisa porque pouco importava seu nome de batismo, era mesmo “a Midiola” de metro e poucos centímetros. Assim chamada, carinhosamente,    por causa do tamanho.

Quituteira de doces e bolos inesquecíveis! Batia toda a massa na mão porque a “zoada” daquela coisa (a moderna batedeira) lhe assustava. Mas, Dona Lalau sempre “acodia” completando o ponto da massa quando os braços lhe cansavam.

Depois, para fazer mimos aos netinhos postiços que mais gostava, escondia partes do bolo em seu guarda roupa! Não sem antes deixar rasparem os tachos da massa crua.

Se orgulhava de usar na cozinha todas as suas colheres de pau comprados na feira livre.

Aprendeu com dona Lalau a fazer compotas de frutas e a assar o Peru de Natal,  cevado por meses no xerém e criado solto no terreiro de casa!

Às crianças só era permitido acompanhar o “furdunçio” até a hora em que se embriagava de cachaça o peru para que, já “grogue”, não ser abatido na maldade.

Sentada de cócoras com a saia entre as pernas pegava aquela ave enorme para seu tamanho e a prendia com força. Tomava ela mesmo um gole da cachaça e outro punha na goela do bichinho.  Os “pixotos da vovó Lalau” ficavam ao lado dando carreira no animal e gargalhando ao ver o peru cambalear.

Mariola sabia que depois de assado a cachaça também deixaria sua carne amaciada. E sorria satisfeita de fazer por alguns minutos o tal peru o centro das atenções. Mas ninguém o via ser sangrado...

E depois,  de bem temperado e cozido, ninguém faria igual a ela! A não ser, a Dona Lalau! Todos comiam. E bem!

Mariola não sentava à mesa com a família. Faltava-lhe os dentes. Assim, preferia comer no oitão da cozinha, de colher, miudinho, amolengando com a língua a comida como Deus permitia.

Vivia cada dia seu dia sem “aperreio”. Mas lhe enervava acharem a sua comidinha sem graça. Feijão nunca faltava e se pensassem num almoço bom,  esse era o trivial.

Por um bom tempo desapareceu. Soube-se que casou, teve um filho, um neto e uma bisneta. Levou sua vida como quis!

E voltou a aparecer já idosa, dona de sua vida, pois queria morrer junto à família da velha patroa - Dona Lalau. Foi recebida de braços abertos e de lá só saiu quando a patroa faleceu.

E não aguentou a saudade. Já tinha vivido bastante.

Um ano depois seu neto nos informou que Midiola tinha ido se juntar aos seus ancestrais.

Porque assim é a história de quem deixa exemplo de luta pela liberdade. Inato, no caso dela – nossa ilustre irmã e avó de cor.

por Gianna Carla Perrelli

Saudades de vovó Lalau e sua Midiola. E o testemunho de uma netinha postiça.